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Atentado.

  Impensável que ao concluir uma das operações mais simples e sobretudo aliviadoras da fisiologia humana, o sujeito deparar-se-ia com um atentado. E tenha em mente, antes de dizê-lo, que não foi qualquer besteira, não, visto que me sinto agora constrangido e com dificuldade para ir ao ponto assim, bem diretamente, preferindo dar essas voltas tão só para ganhar tempo de encontrar as expressões menos inferiores. Mas a verdade é que um rapaz, estando na rua, com a bexiga absurdamente cheia, quis esvaziá-la em um lugar adequado, e o banheiro do shopping pareceu-lhe mais apropriado para este fim naquele momento, apesar da longa distância do ponto onde ele estava até o estabelecimento. Uma vez que estava no limite de suas resistências, andava com alguma dificuldade, com receio da vergonha pública que a marca infantil nas suas vestes poderia lhe render se não conseguisse se segurar. Mesmo com toda a lentidão no passar, chegou a tempo ao banheiro. Lá, durante o fluxo da eliminação, ele olh

Panfletos

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Os panfletos que nos entregam nos centros urbanos - para serem enfiados no fundo do bolso, quando não jogados no lixo ou no chão - podem, muito bem, instrumentalizar nobres sentimentos. Isso dependerá, contudo, do panfleteiro em questão, porque nem todos têm a capacidade de, naqueles milésimos de segundos de possibilidade de entrega do papelzinho e curtíssima interação com um estranho, arrebatar um coração, sobretudo se o entregador(a) não for provido de atributos físicos específicos e não tiver um boa palavra que acompanhe a mão estendida. Notei o papel desempenhado pelos papeizinhos distribuídos por aquela moça ali– eu a vejo todos os dias pela janela. Ela está sempre em frente àquela loja, cuja entrada é convidativa tão somente por sua causa. Não se trata de uma mera distribuidora de panfleto, ofício digníssimo, existe algo a mais para além daquela calça justa que esculpe tudo, algo de imaterial, anímico e por que não qualquer coisa de sublime que faz com que aquele calvo passe se
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  Olho de vidro. Sou dos que, se tiver jeito, remendo. Não tinha mais, mas eu insisti em mantê-lo nas vascas da agonia, para que não me fosse preciso apelar para um novo. Recorri então ao meio mais óbvio, fui ao mercado informal localizado a umas quatro quadras daqui. Mostrei-lhes meu lustroso celular preto, com cicatrizes de guerra e sem dois botõezinhos. Eu queria apenas os dois botõezinhos, porque sem eles nada adiantaria ter um celular bonito. Mostrei o problema a um, que delegou a resolução a outro, que iria repetir a terceirização a um outro - que não estava ali. Este, sim, resolveria. Após 45 minutos, chega o cirurgião de eletrônicos. Lembro de um sujeito carrancudo e muito requisitado, que não fez questão de retribuir meu cumprimento de boa-tarde. - E aí, grande? - foi o cumprimento. Seu olho esquerdo era de vidro. Lutei comigo para não mostrar admiração, mas o olho direito me percebeu. O constrangimento só existiu de minha parte, porque ele fez questão de abrir um malandro sor

Liberdade.

  Liberdade.   Liberdade.   Entrar onde pudessem me trancar,   Talvez me entregar, sem me perder – Mas livre para a liberdade me prender - Sem me conter, e nada me deter, Tendo a benção para poder descontrolar.   Quero me prender, mas desejo me livrar. E se a Liberdade me livrar de me prender, Prefiro então me recolher E limitar meu caminhar.   Livra-me, senhor, de toda liberdade malsã. Restringe-me; estreita-me os passos. Cerca-me de todo livramento divã, E Acrisola-me após os percalços.   Mergulhado neste colo macio , quero-lhe como o infinito. Infinito...Desejo-o justamente porque conheço a verdade. És puro, senhor infinito, tal como o sublime colo Que devoro sem voracidade...         Cheguei...Vim de onde queria ficar, Tenha talvez me entregado, sem ter me perdido.   E como ser livre sem se perder?   Digo livre de me desprender De me conter e querer deter O que não dá pra controlar.   Senhor... Liberta-me para vive

Pequeno barulho.

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A diferença entre um grande evento e um pequeno barulho está nos tipos de ambientes - uma vez que um sepultamento num interior é experenciado de forma diversa na cidade - e na simples necessidade de se preencher um vazio ou de sair do ócio. Pode-se dizer também que a depender da profisssão da testemunha do ocorrido, será a primeira ou a segunda opção, porque, se para uma dona de casa um botijão com gás escapando é um grande evento, para um bombeiro é um pequeno estalo. E se pra ela cuidar sozinha de cinco filhos, um marido e um cachorro é um pequeno estalo, para o bombeiro... Andei notando isso na minha vizinhança. Não reparei em nenhuma dona de casa e por aqui - pelo que sei -, não há bombeiros, mas há Edivaldo - o Folclórico porteiro. Folclorizar personas com as características dele é um péssimo hábito no meu país, onde estigmatizaram o povo como cordial, emocional e ‘desoreupeuzado’, em suma, como besta ignorante. Não pretendia fazer isso, mas Edivaldo era, sim, uma figura folcl

Perdão, pessoal.

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Perdão, pessoal. Eu lhes peço perdão pelo que já fiz e deixarei de fazer, porque a partir de agora eu, finalmente, irei começar a fazer por mim o que fizera por vocês. Perdão! Não é nada pessoal, pessoal; bem, na verdade o é também, e se não absolutamente, porque nada tenho contra vós, o é substancialmente, em razão de que precisei reavaliar a maneira pela qual me relacionava com as pessoas – notadamente algumas - e, na reavaliação, descobri que os acostumei mal com o bem. Melhor, com um ‘’bem’’, antes do juízo que tirem de alguma pretensão. Em parte, meus queridos, vocês não tem tanta responsabilidade. Admito que lhes dei combustível para cada reincidência e pontos de continuação para cada reinício de ciclos já findados pelo cosmos. Engoli o que não podia descer, como quem recorre aos líquidos para desentalar. O meu tipo de Bem era contemporizador e infantilmente passível, dúctil, viciante como os psicotrópicos. Um bem joguete de ocasiões que serve como preenchimento de lacunas as
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  O que representa? O que representa cada luz e cada escuridão, hein? Cada lâmpada ligada, aluminando os cômodos, e cada interruptor desligado, apagando os cantos? Representam mesmo? Penso que devam ser apenas representações da realidade incriada e nada mais. Penso que a nossa expectativa de que tudo deva representar alguma coisa é pura pretensão humana e nada mais. Às vezes penso que o ser humano pensa demais; veja só, são apenas janelas, quadrados escuros e luminosos, basta ser mais um desses por aqui, para quê mais? Decido espiá-los com a minha ridícula pretensão; espio-os. A madrugada já se estabeleceu por aqui, e me arrisco a dizer que é com a madrugada estabelecida, instaurada, com firma reconhecida em cartório, que é possível fazer a pergunta do título. Ei, por que não apaga? Por que não acende? E você, minha senhora ou meu senhor, moça ou rapaz, porque ora apaga, ora acende? Tanta angústia deve ter por aí ... tanta paz por ali...tantos estudos acolá. No último andar deve